segunda-feira, 17 de agosto de 2009

O presente projeto de pesquisa estabelece como objetivo geral avaliar os Fundos Rotativos Solidários (FRS) – particularmente o seu desenho e a sua metodologia e os seus impactos nas condições de vida cotidiana e nas identidades das comunidades no Estado da Paraíba onde seis projetos financiados pelo Banco do Nordeste do Brasil (com recursos da União via Secretaria Nacional de Economia Solidária) foram contemplados. Os impactos nas condições de vida cotidiana das comunidades serão analisados a partir de quatro eixos: 1) fortalecimento da organização produtiva, das tecnologias e demais saberes tradicionais; 2) autonomia política em relação às práticas clientelistas locais; 3) desenvolvimento de novas relações homem-natureza condizentes com a proposta de convivência com o semi-árido e 4) ressignificações em suas identidades tradicionais.

Neste sentido um conjunto de indagações se explicita: Como se resolve na dinâmica das comunidades as tensões entre os valores tradicionais que remetem à reciprocidade e valores individualistas característicos de uma sociedade que pratica uma economia de mercado? De que forma as lógicas da solidariedade e da reciprocidade subjacentes à metodologia dos FRS são acionadas como instrumento privilegiado de geração de renda e combate à pobreza? Quais são os limites e possibilidades dos FRS? Como os FRS são ressignificados pelos pequenos agricultores e suas respectivas famílias? E como os Fundos permitem ressignificar suas identidades nas suas vidas cotidianas? Quais são os sentidos atribuídos aos Fundos pelos diversos atores sociais envolvidos em seu planejamento e execução, tais como: Técnicos do BNB; movimentos sociais; cooperativas e associações; administração municipal? Como se articulam a lógica da solidariedade e de mercado na comercialização dos produtos? Como se articulam solidariedade e capitalismo? Tais indagações nos remetem aos limites e possibilidades das políticas públicas como mecanismo central de combate à pobreza em nosso país, e, simultaneamente, das regras tradicionais de reciprocidade em confronto com valores individualistas que predominam em nossa sociedade. Deste modo, faz-se necessário uma análise crítica de tais políticas da perspectiva dos vários atores, sobretudo, dos pequenos agricultores, que são as pessoas contempladas com tais Fundos.


sábado, 11 de julho de 2009

Solidariedade hoje. O que significa?

Maria Alice Nunes Costa - Cientista política e doutora em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ. Atualmente é Coordenadora do Curso de Comunicação Social da UNICARIOCA, professora de Política Pública da USS e servidora pública da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Atua na área de políticas públicas, com ênfase em redes de parcerias, investimento social privado e a responsabilidade social empresarial.

A sociedade acuada pela violência, pela renda mal distribuída e pela precarização de setores populacionais urbanos vem criando um novo tipo de solidariedade, ao largo da ação estatal ou da caridade postulada pela Igreja Católica.

Ser solidário está na ordem do dia. Mas quem se solidariza pelo desemprego e pelas mazelas e catástrofes do mundo contemporâneo? O que significa, hoje em dia, ter solidariedade?


Mas quem se solidariza pelo desemprego e pelas mazelas e catástrofes do mundo contemporâneo?

O tema não é novidade para a nossa época. As reflexões sobre solidariedade tiveram como marco as idéias de Durkheim no século XIX, idéias essas caracterizadas pela instabilidade política e por guerras civis (Terceira República Francesa -1870/1904). A sociedade européia mostrava-se, aos olhos de Durkheim, pouco integrada e cheia de contradições. A família e a religião acusavam sinais de enfraquecimento de suas antigas funções. As idéias e valores da velha ordem social foram destruídos pelo vendaval revolucionário de 1789, e, portanto, era necessário criar um novo sistema científico e moral que se harmonizasse com a ordem industrial emergente.

Na perspectiva da teoria Marxista, os trabalhadores criariam uma nova forma de solidariedade a partir da revolução. A revolução proposta por Marx e Engels (1978), se fundamenta na análise científica do capitalismo e nela encontra as maneiras pelas quais os trabalhadores, conscientes e organizados, realizariam sua própria emancipação. No Manifesto Comunista, Marx e Engels conclamam os proletários do mundo todo a se unirem e a se organizarem para a longa luta solidária contra o capital.

Na tradição socialista a solidariedade provém do interesse comum de classe que imprime em cada um de seus membros a obrigação moral de responsabilizar-se pelo destino do outro. Este é o sentido em que o termo solidariedade foi empregado nas lutas dos trabalhadores, em que o destino do outro é decorrência do pertencimento comum de classe.


Este é o sentido em que o termo solidariedade foi empregado nas lutas dos trabalhadores, em que o destino do outro é decorrência do pertencimento comum de classe.

Atualmente, a expressão solidariedade tem aparecido no debate político com muita ambiguidade. A solidariedade muitas vezes se confunde com caridade ou filantropia, traduzindo uma maneira de pensar a providência como amor ao próximo. No caso do Estado, a solidariedade surgiu como seguro social e se desenvolveu nas práticas do Estado-Providência. Uma solidariedade compulsória que se expressava no interesse coletivo de redistribuir a riqueza nacional. Hoje, frente às alterações sofridas pelo Estado-Providência, a sociedade busca uma forma alternativa de solidariedade. Ela tem se expandido mostrando que o Estado não é a única via de coesão social. Com a proposta da co-responsabilidade, induzida por um Estado apoiado pelo neoliberalismo, estamos reconstruindo uma solidariedade conduzida por uma pluralidade de atores sociais, disputando, convergindo e divergindo quanto à produção do bem-estar social, daí a ambiguidade atual do conceito.

A família, a Nação, a Igreja e as classes sociais não são como dantes. Estamos sofrendo as influências globalizantes e, diante do multiculturalismo, convivendo com uma multiplicação de diferentes estilos de vida. A solidariedade centrada no Estado se tornou mais diluída. O Estado se tornou mais fluido e seu poder, compartilhado com o mercado e comunidades, tornou essas relações mais flexíveis e mais plurais.

Para Ulrich Beck (1998), antes os riscos e os acidentes eram sensorialmente evidentes, hoje são globais, impessoais e escapam à percepção humana. Para Beck, a "sociedade do risco" é uma sociedade catastrófica, enquanto nas sociedades de classe a solidariedade era realizada para rechaçar a miséria, o movimento que se põe em marcha na sociedade do risco é a da 'solidariedade do medo', que acaba por se converter em força política.


A família, a Nação, a Igreja e as classes sociais não são como dantes. Estamos sofrendo as influências globalizantes e, diante do multiculturalismo, convivendo com uma multiplicação de diferentes estilos de vida.

Entendo solidariedade como um sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses de um grupo social, de uma nação ou da humanidade. Além de um preceito moral, solidariedade é uma palavra de ordem, significando que o ônus de cada um deve ser redistribuído entre os membros da comunidade solidária. Lembrando o velho ditado popular: "um por todos e todos por um". Ou seja, ser solidário significa colocar-se conscientemente no lugar do outro, identificar-se com o destino do outro. Nesse sentido, solidariedade é a relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo sinta a obrigação moral de apoiar os outros.

Contudo, não é suficiente que a solidariedade se apresente, unicamente, como consciência moral. É preciso que a solidariedade seja institucionalizada em reais possibilidades de comportamento, na medida em que ela é um produto cultural, social, fruto do processo civilizatório. Solidariedade significa, assim, a responsabilização coletiva pela garantia de uma vida digna e, para tanto, precisa ser operacionalizada institucionalmente.


Contudo, não é suficiente que a solidariedade se apresente, unicamente, como consciência moral.

A institucionalização da solidariedade, via segurança social estatal, nos países pobres nunca atingiu seu ápice. No Brasil, pelo fato do Estado-providência ser limitado e excludente, criou-se um estado de natureza em sentido hobbesiano, em que cada qual administra seus problemas por conta própria.

A limitação da providência estatal, em alguma medida, tem sido sublimada pela existência de solidariedades primárias geridas pela 'sociedade-providência', exatamente, para compensar a insuficiência do Estado-Providência. São relações e práticas sociais vinda da família, dos amigos e por laços de afinidade que, por via de trocas não-mercantis de bens e serviços, asseguraram o bem-estar e a proteção social que, nas sociedades européias, foram asseguradas pelo Estado-Providência (Santos, 1999).

Para Boaventura de Sousa Santos (1995), a 'sociedade-providência' em vez de solidariedade abstrata, como a do Estado, apresenta uma solidariedade concreta, baseada em relações comunitárias, de proximidade e de reciprocidade. Em vez do cálculo distributivo da idéia de cidadania, a 'sociedade-providência' baseia-se no investimento emocional, em compromissos e cumplicidade que não fazem parte da arena da obrigatoriedade e, sim, da disponibilidade dos membros em ajudar. A 'sociedade-providência' aparece, então, como uma alternativa complementar de proteção em situações de risco e de vulnerabilidade social; contudo, é um arranjo institucional compensatório e provisório.

Ao mesmo tempo em que se observa o regresso de algumas formas de solidariedade pré-estatal surgem, concomitantemente, novos espaços públicos não-estatais e o envolvimento de novos atores sociais na produção do bem-estar social, através da idéia de redes sociais.

As redes têm se tornado a principal forma de coordenação das relações sociais sob o capitalismo, com o objetivo de responder à atual complexidade, como meio de tecer a solidariedade entre os membros da sociedade. Muitos acreditam que a coordenação por redes pode gerar bons frutos, quando induzir a relações colaborativas, democráticas e emancipatóriais.


Os analistas de redes sociais tentam descrever esses padrões e compreender como as estruturas de redes influenciam o comportamento social e produzem mudança.

Os analistas de redes sociais tentam descrever esses padrões e compreender como as estruturas de redes influenciam o comportamento social e produzem mudança. Suas descrições estão baseadas em conceitos de laços (ties), conectando nódulos (nodes) em um sistema social - laços que conectam pessoas, grupos, organizações. Desta maneira, as redes sociais de solidariedade se organizam para buscar o enfrentamento da insegurança econômica e da ineficiência dos serviços públicos (WELLMAN, 1991).

Para Lechner (1997), a coordenação via redes opera como uma espécie de 'seguro mútuo'. As redes disciplinam a competência, inibindo suas dinâmicas destrutivas e canalizando as expectativas recíprocas. Lechner acredita que a coordenação via redes parece resolver o aspecto da regulação social. Contudo, não parece eficiente para realizar as exigências da representatividade. Não se pode generalizar que a coordenação por redes assegura o processo democrático, pois a população não-organizada não tem acesso às redes, e os próprios representantes do Estado ao invés de fazer valer os 'interesses gerais', podem não se dispor a propor uma deliberação democrática prévia acerca do bem comum. Em suma, não existe uma vinculação intrínseca entre a coordenação mediante redes e as instituições democráticas. Pelo contrário, a representação funcional através de redes e a representação territorial típica das instituições democráticas podem chegar a ser canais paralelos, quando não contraditórios.


As redes trazem importantes mudanças na sociabilidade e na espacialidade, criando territórios de ação coletiva, um novo imaginário social, uma comunidade virtual.

As redes trazem importantes mudanças na sociabilidade e na espacialidade, criando territórios de ação coletiva, um novo imaginário social, uma comunidade virtual. Entretanto, se ampliam a possibilidade de comunicação, possuem também um aspecto de exclusão, pois nem todos têm acesso a todas as informações para se comunicar.

A rede social envolve também a reflexão sobre o 'paradigma da dádiva'. A teoria da dádiva formulada por Marcel Mauss (1988), em 1924, no Ensaio sobre a Dádiva, procurou demonstrar que os fenômenos do Estado e do mercado não são universais, não havendo evidências da presença dos mesmos nas sociedades tradicionais mas, apenas em sociedades mais complexas como as modernas. Porém, em todas as sociedades existe um sistema de reciprocidades conhecido como dom ou dádiva. Este sistema aparece necessariamente como um fenômeno total que atravessa a totalidade da vida social através da tríplice obrigação coletiva de dar, receber e devolver bens simbólicos e materiais. É a partir desse sistema de reciprocidades que se cria o vínculo social.

Mais recentemente, a teoria da dádiva foi resgatada por intelectuais franceses que criaram o movimento M.A.U.S.S. (Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais) em 1981. Um dos aspectos destacados pelos intelectuais do movimento MAUSS é o 'princípio do paradoxo' da teoria da dádiva e, que está subjacente à teoria das redes sociais. Este princípio permite superar a construção dicotômica entre obrigação/liberdade e interesse/desinteresse, na medida em que esses valores estão intrinsecamente desenvolvidos na ação coletiva, principalmente através das redes sociais. Para a teoria da dádiva esses valores não são contraditórios, são elementos de um paradoxo existente no círculo da troca de bens simbólicos e materiais. São expressões polares da realidade social complexa e elementos constituintes do movimento incessante e ambivalente de trocas.


A confiança gerada nas redes sociais pressupõe obrigações de reciprocidade.

A confiança gerada nas redes sociais pressupõe obrigações de reciprocidade. Este exercício de reciprocidade pressupõe um risco, próprio da teoria da dádiva, que não pode ser calculado, pois está aberto às incertezas. Há um risco inerente ao Dom/dádiva pelo fato de não haver certeza de que o receptor vai receber a ação ou vai retribuí-la. Tudo é possível.

Acredito que nenhuma ação humana é apenas cálculo instrumental ou apenas pura gratuidade e desinteresse, ela é mesclada de outras pulsões: dever, prazer, paixão e interesse. Não podemos absolutizar nenhum princípio que rege o social. A vida moral se desenvolve numa realidade social contingenciada e ser ético e solidário também pode ser rentável.

Em suma, podemos parafrasear Durkheim no sentido de que solidariedade é um conceito abstrato, essência, um princípio que não existe. O que existe são formas concretas de solidariedade; e, se todos são morais e solidários, essa solidariedade não se dá de forma única, igual. Ficamos com a percepção que estamos desenvolvendo importantes arranjos institucionais compensatórios, que estão se tornando permanentes, nos obrigando a revisar o modelo de coesão social que queremos para o Brasil. Resta-nos saber quais serão os resultados do sentido prático da solidariedade contida na providência produzida por tantas organizações de solidariedade social existentes no País. Será que continuaremos no 'gattopardismo': "mudar para que nada se mude"?

REFERÊNCIAIS BIBLIOGRÁFICAS:

BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Piados Básica, 1998.

COSTA, Maria Alice Nunes. As mudanças empresariais no Brasil Contemporâneo: o investimento social privado é uma nova forma de solidariedade? Tese de Doutorado. Instituto de Planejamento Urbano e Regional (UFRJ/IPPUR), 2006.

DURKHEIM, E. De la división del trabajo social. Buenos Aires: Schapire, 1967.
GRANOVETTER, M. The strengh of weak ties: a network theory revisited". Albany Conference on Contributor of Networks Analysis to Strutural Sociology, apr, 1981.

LECHNER, Norbert. Tres formas de coordinación social". In Revista de la CEPAL, 61, Abril, 1997.

MARX, K. e ENGELS, F. O manifesto comunista de Marx e Engels. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 1988.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Sociedade-providência ou autoritarismo social". In Revista Crítica de Ciências Sociais, "A sociedade-providência", n.42, maio, Coimbra: Centro de Estudos Sociais, 1995.

______. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo:Ed.Cortez, 1999a.

WELLMAN, Barry. Strutural Analysis: from method and metaphor to theory and substance. In ELLMAN, Barry e BERKOWITZ, S.D., Social Strutures: a network approach. Cambridge: Cambridge University Press, 1991

Teoria do Fato Social

Durkheim Propõe uma Teoria do Fato Social

Por sua vez, E. Durkheim, em Da Divisão do Trabalho Social, de 1893, coloca duas questões sobre as relações entre os indivíduos e a coletividade[16]:

· como pode um conjunto de indivíduos constituir uma sociedade?

· como este conjunto de indivíduos consegue obter um consenso para a convivência?

Segundo Durkheim, duas formas de solidariedade social podem ser constatadas: a solidariedade mecânica, típica das sociedades pré-capitalistas, onde os indivíduos se identificam através da família, da religião, da tradição, dos costumes. É uma sociedade que tem coerência porque os indivíduos ainda não se diferenciam. Reconhecem os mesmos valores, os mesmos sentimentos, os mesmos objetos sagrados, porque pertencem a uma coletividade. E a solidariedade orgânica, característica das sociedades capitalistas, onde, através da divisão do trabalho social, os indivíduos tornam-se interdependentes, garantindo, assim, a união social, mas não pelos costumes, tradições etc. Os indivíduos não se assemelham, são diferentes e necessários, como os órgãos de um ser vivo. Assim, o efeito mais importante da divisão do trabalho não é o aumento da produtividade, mas a solidariedade que gera entre os homens.

Algumas idéias fundamentais decorrem desta análise, como o conceito de consciência coletiva: "O conjunto de crenças e de sentimentos comuns entre os membros de uma mesma sociedade, forma um sistema determinado que tem sua vida própria; podemos chamá-la de consciência coletiva ou
Durkheim
comum. Sem dúvida, ela não tem como substrato um órgão único; é, por definição, difusa, ocupando toda a extensão da sociedade; mas nem por isso deixa de ter características específicas, que a tornam uma realidade distinta. Com efeito, ela é independente das condições particulares em que se situam os indivíduos. Estes passam, ela fica. É a mesma no Norte e no Sul, nas grandes e nas pequenas cidades, nas diferentes profissões. Por outro lado, não muda em cada geração, mas ao contrário liga as gerações que se sucedem. Portanto, não se confunde com as consciências particulares, embora se realize apenas nos indivíduos. É o tipo psíquico da sociedade, tipo que tem suas propriedades, condições de existência, seu modo de desenvolvimento, exatamente como os tipos individuais, embora de outra maneira"[17].

Nas sociedades dominadas pela solidariedade mecânica a consciência coletiva abrange a maior parte dos membros desta sociedade. Nas sociedades dominadas pela solidariedade orgânica há uma redução desta consciência coletiva porque os indivíduos são diferenciados. Por isso, nestas últimas, em oposição às primeiras, ocorre um enfraquecimento das reações coletivas contra a violação das proibições sociais e há, especialmente, uma margem maior na interpretação individual dos imperativos sociais.

Durkheim defende também o primado da sociedade sobre o indivíduo:

· as sociedades têm prioridade histórica sobre os indivíduos

· as sociedades têm prioridade lógica sobre os indivíduos, porque se a solidariedade mecânica precede a solidariedade orgânica, não se pode explicar a diferenciação social a partir dos indivíduos, pois a consciência de individualidade não pode existir antes da solidariedade orgânica e da divisão do trabalho social.

Daí que os fenômenos individuais devem ser explicados a partir da coletividade, e não a coletividade pelos fenômenos individuais. Donde a divisão do trabalho ser um fenômeno social que só pode ser explicado por outro fenômeno social, como a combinação do volume, densidade material e moral de uma sociedade, sendo que o único grupo social que pode proporcionar a integração dos indivíduos na coletividade é a corporação profissional.

Em outra importante obra, publicada em 1912, As Formas Elementares da Vida Religiosa, E. Durkheim propõe a elaboração de uma teoria geral da religião fundamentada nas formas mais simples e primitivas das instituições religiosas. Durkheim acredita, assim, que se possa apreender a essência de um fenômeno social observando suas formas mais elementares. Por isso parte do estudo do totemismo nas tribos australianas, chegando à conclusão de que os homens adoram uma realidade que os ultrapassa, que sobrevive a eles, mas que esta realidade é a própria sociedade sacralizada como força superior. Nem as forças naturais, nem os espíritos, nem as almas são sagradas por si mesmas. Só a sociedade é uma realidade sagrada por si mesma. Pertence à ordem da natureza, mas a ultrapassa. É ao mesmo tempo causa do fenômeno religioso e justificativa da distinção entre sagrado e profano. Para Durkheim, qualquer crença ou prática religiosa é semelhante às práticas totêmicas.

Mas por que a própria sociedade torna-se objeto de crença e culto? Durkheim explica: "De maneira geral, não há dúvida de que uma sociedade tem tudo o que é preciso para despertar nos espíritos, unicamente pela ação que ele exerce sobre eles, a sensação do divino; porque ela é para os seus membros o que um deus é para os seus fiéis. Um deus, com efeito, é antes de tudo um ser que o homem imagina, em determinados aspectos, como superior a si mesmo e de quem acredita depender. Quer se trate de personalidade consciente, como Zeus ou Javé, ou então de forças abstratas como as que estão presentes no totemismo, o fiel, tanto num caso como no outro, acredita-se obrigado a determinadas maneiras de agir que lhe são impostas pela natureza do princípio sagrado com o qual se sente em relação. Ora, a sociedade também alimenta em nós a sensação de contínua dependência. Como tem natureza que lhe é própria, diferente da nossa natureza de indivíduo, ela visa a fins que lhe são igualmente especiais: mas, como só pode atingi-los por nosso intermédio, reclama imperiosamente nosso concurso. Ela exige que, esquecidos de nossos interesses, nos tornemos seus servidores e nos impõe toda espécie de incômodos, de privações e de sacrifícios sem os quais a vida social seria impossível. É por isso que a cada instante somos obrigados a nos submeter a regras de comportamento e de pensamento que não fizemos nem quisemos, e que às vezes são até contrárias às nossas tendências e aos nossos instintos fundamentais.

Todavia, se a sociedade só obtivesse de nós essas concessões e esses sacrifícios por imposição material, não poderia despertar em nós senão a idéia de força física à qual devemos ceder por necessidade, e não a idéia de força moral do gênero das que as religiões adoram. Mas na realidade, o domínio que ela exerce sobre as consciências vincula-se muito menos à supremacia física de que tem o privilégio do que à autoridade moral de que está investida. Se nos submetemos às suas ordens, não é simplesmente porque está armada de maneira a triunfar das nossas resistências, é, antes de tudo, porque constitui o objeto de autêntico respeito"[18].

Em As Regras do Método Sociológico, de 1895, Durkheim propõe, com sua sociologia formular uma teoria do fato social, demonstrando que pode haver uma ciência sociológica objetiva e científica, como nas ciências físico-matemáticas.

Para que haja tal ciência são necessárias duas coisas: um objeto específico que se distinga dos objetos das outras ciências e um objeto que possa ser observado e explicado, como se faz nas ciências.

Daí duas outras importantes afirmações de Durkheim:

· os fatos sociais devem ser considerados como coisas

· os fatos sociais exercem uma coerção sobre os indivíduos.

E explica: "É um fato social toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coação exterior; ou ainda, que é geral no conjunto de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais"[19].

E na conclusão deste mesmo livro resume as características deste método sociológico: "Em primeiro lugar, é independente de qualquer filosofia (...) Em segundo lugar, o nosso método é objetivo. É totalmente dominado pela idéia de que os fatos sociais são coisas e devem ser tratados como tais (...) Mas, se consideramos os fatos sociais como coisas, consideramo-los como coisas sociais. A terceira característica do nosso método é ser exclusivamente sociológico (...) Mostramos que um fato social só pode ser explicado por um outro fato social e, simultaneamente, como este tipo de explicação é possível assinalando no meio social interno o motor principal da evolução coletiva (...) Tais nos parecem ser os princípios do método sociológico"[20].

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[16]. Cf. ARON, R., As etapas do pensamento sociológico, São Paulo, Martins Fontes/Editora da UnB, 19872, pp. 295-375.

[17]. DURKHEIM, E., De la division de travail social, Paris, PUF, 1960, p. 46 ou em http://gallica.bnf.fr/Fonds_Frantext/T0088267.htm, p. 46.

[18]. DURKHEIM, E., As Formas Elementares da Vida Religiosa, pp. 260-261.

[19]. DURKHEIM, E., As Regras do Método Sociológico, pp. 92-93.

[20]. Idem, ibidem, pp. 159-161.

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Extraído do site: http://www.airtonjo.com/socio_antropologico02.htm