A sociedade acuada pela violência, pela renda mal distribuída e pela precarização de setores populacionais urbanos vem criando um novo tipo de solidariedade, ao largo da ação estatal ou da caridade postulada pela Igreja Católica.
Ser solidário está na ordem do dia. Mas quem se solidariza pelo desemprego e pelas mazelas e catástrofes do mundo contemporâneo? O que significa, hoje em dia, ter solidariedade?
O tema não é novidade para a nossa época. As reflexões sobre solidariedade tiveram como marco as idéias de Durkheim no século XIX, idéias essas caracterizadas pela instabilidade política e por guerras civis (Terceira República Francesa -1870/1904). A sociedade européia mostrava-se, aos olhos de Durkheim, pouco integrada e cheia de contradições. A família e a religião acusavam sinais de enfraquecimento de suas antigas funções. As idéias e valores da velha ordem social foram destruídos pelo vendaval revolucionário de 1789, e, portanto, era necessário criar um novo sistema científico e moral que se harmonizasse com a ordem industrial emergente.
Na perspectiva da teoria Marxista, os trabalhadores criariam uma nova forma de solidariedade a partir da revolução. A revolução proposta por Marx e Engels (1978), se fundamenta na análise científica do capitalismo e nela encontra as maneiras pelas quais os trabalhadores, conscientes e organizados, realizariam sua própria emancipação. No Manifesto Comunista, Marx e Engels conclamam os proletários do mundo todo a se unirem e a se organizarem para a longa luta solidária contra o capital.
Na tradição socialista a solidariedade provém do interesse comum de classe que imprime em cada um de seus membros a obrigação moral de responsabilizar-se pelo destino do outro. Este é o sentido em que o termo solidariedade foi empregado nas lutas dos trabalhadores, em que o destino do outro é decorrência do pertencimento comum de classe.
Atualmente, a expressão solidariedade tem aparecido no debate político com muita ambiguidade. A solidariedade muitas vezes se confunde com caridade ou filantropia, traduzindo uma maneira de pensar a providência como amor ao próximo. No caso do Estado, a solidariedade surgiu como seguro social e se desenvolveu nas práticas do Estado-Providência. Uma solidariedade compulsória que se expressava no interesse coletivo de redistribuir a riqueza nacional. Hoje, frente às alterações sofridas pelo Estado-Providência, a sociedade busca uma forma alternativa de solidariedade. Ela tem se expandido mostrando que o Estado não é a única via de coesão social. Com a proposta da co-responsabilidade, induzida por um Estado apoiado pelo neoliberalismo, estamos reconstruindo uma solidariedade conduzida por uma pluralidade de atores sociais, disputando, convergindo e divergindo quanto à produção do bem-estar social, daí a ambiguidade atual do conceito.
A família, a Nação, a Igreja e as classes sociais não são como dantes. Estamos sofrendo as influências globalizantes e, diante do multiculturalismo, convivendo com uma multiplicação de diferentes estilos de vida. A solidariedade centrada no Estado se tornou mais diluída. O Estado se tornou mais fluido e seu poder, compartilhado com o mercado e comunidades, tornou essas relações mais flexíveis e mais plurais.
Para Ulrich Beck (1998), antes os riscos e os acidentes eram sensorialmente evidentes, hoje são globais, impessoais e escapam à percepção humana. Para Beck, a "sociedade do risco" é uma sociedade catastrófica, enquanto nas sociedades de classe a solidariedade era realizada para rechaçar a miséria, o movimento que se põe em marcha na sociedade do risco é a da 'solidariedade do medo', que acaba por se converter em força política.
Entendo solidariedade como um sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses de um grupo social, de uma nação ou da humanidade. Além de um preceito moral, solidariedade é uma palavra de ordem, significando que o ônus de cada um deve ser redistribuído entre os membros da comunidade solidária. Lembrando o velho ditado popular: "um por todos e todos por um". Ou seja, ser solidário significa colocar-se conscientemente no lugar do outro, identificar-se com o destino do outro. Nesse sentido, solidariedade é a relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo sinta a obrigação moral de apoiar os outros.
Contudo, não é suficiente que a solidariedade se apresente, unicamente, como consciência moral. É preciso que a solidariedade seja institucionalizada em reais possibilidades de comportamento, na medida em que ela é um produto cultural, social, fruto do processo civilizatório. Solidariedade significa, assim, a responsabilização coletiva pela garantia de uma vida digna e, para tanto, precisa ser operacionalizada institucionalmente.
A institucionalização da solidariedade, via segurança social estatal, nos países pobres nunca atingiu seu ápice. No Brasil, pelo fato do Estado-providência ser limitado e excludente, criou-se um estado de natureza em sentido hobbesiano, em que cada qual administra seus problemas por conta própria.
A limitação da providência estatal, em alguma medida, tem sido sublimada pela existência de solidariedades primárias geridas pela 'sociedade-providência', exatamente, para compensar a insuficiência do Estado-Providência. São relações e práticas sociais vinda da família, dos amigos e por laços de afinidade que, por via de trocas não-mercantis de bens e serviços, asseguraram o bem-estar e a proteção social que, nas sociedades européias, foram asseguradas pelo Estado-Providência (Santos, 1999).
Para Boaventura de Sousa Santos (1995), a 'sociedade-providência' em vez de solidariedade abstrata, como a do Estado, apresenta uma solidariedade concreta, baseada em relações comunitárias, de proximidade e de reciprocidade. Em vez do cálculo distributivo da idéia de cidadania, a 'sociedade-providência' baseia-se no investimento emocional, em compromissos e cumplicidade que não fazem parte da arena da obrigatoriedade e, sim, da disponibilidade dos membros em ajudar. A 'sociedade-providência' aparece, então, como uma alternativa complementar de proteção em situações de risco e de vulnerabilidade social; contudo, é um arranjo institucional compensatório e provisório.
Ao mesmo tempo em que se observa o regresso de algumas formas de solidariedade pré-estatal surgem, concomitantemente, novos espaços públicos não-estatais e o envolvimento de novos atores sociais na produção do bem-estar social, através da idéia de redes sociais.
As redes têm se tornado a principal forma de coordenação das relações sociais sob o capitalismo, com o objetivo de responder à atual complexidade, como meio de tecer a solidariedade entre os membros da sociedade. Muitos acreditam que a coordenação por redes pode gerar bons frutos, quando induzir a relações colaborativas, democráticas e emancipatóriais.
Os analistas de redes sociais tentam descrever esses padrões e compreender como as estruturas de redes influenciam o comportamento social e produzem mudança. Suas descrições estão baseadas em conceitos de laços (ties), conectando nódulos (nodes) em um sistema social - laços que conectam pessoas, grupos, organizações. Desta maneira, as redes sociais de solidariedade se organizam para buscar o enfrentamento da insegurança econômica e da ineficiência dos serviços públicos (WELLMAN, 1991).
Para Lechner (1997), a coordenação via redes opera como uma espécie de 'seguro mútuo'. As redes disciplinam a competência, inibindo suas dinâmicas destrutivas e canalizando as expectativas recíprocas. Lechner acredita que a coordenação via redes parece resolver o aspecto da regulação social. Contudo, não parece eficiente para realizar as exigências da representatividade. Não se pode generalizar que a coordenação por redes assegura o processo democrático, pois a população não-organizada não tem acesso às redes, e os próprios representantes do Estado ao invés de fazer valer os 'interesses gerais', podem não se dispor a propor uma deliberação democrática prévia acerca do bem comum. Em suma, não existe uma vinculação intrínseca entre a coordenação mediante redes e as instituições democráticas. Pelo contrário, a representação funcional através de redes e a representação territorial típica das instituições democráticas podem chegar a ser canais paralelos, quando não contraditórios.
As redes trazem importantes mudanças na sociabilidade e na espacialidade, criando territórios de ação coletiva, um novo imaginário social, uma comunidade virtual. Entretanto, se ampliam a possibilidade de comunicação, possuem também um aspecto de exclusão, pois nem todos têm acesso a todas as informações para se comunicar.
A rede social envolve também a reflexão sobre o 'paradigma da dádiva'. A teoria da dádiva formulada por Marcel Mauss (1988), em 1924, no Ensaio sobre a Dádiva, procurou demonstrar que os fenômenos do Estado e do mercado não são universais, não havendo evidências da presença dos mesmos nas sociedades tradicionais mas, apenas em sociedades mais complexas como as modernas. Porém, em todas as sociedades existe um sistema de reciprocidades conhecido como dom ou dádiva. Este sistema aparece necessariamente como um fenômeno total que atravessa a totalidade da vida social através da tríplice obrigação coletiva de dar, receber e devolver bens simbólicos e materiais. É a partir desse sistema de reciprocidades que se cria o vínculo social.
Mais recentemente, a teoria da dádiva foi resgatada por intelectuais franceses que criaram o movimento M.A.U.S.S. (Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais) em 1981. Um dos aspectos destacados pelos intelectuais do movimento MAUSS é o 'princípio do paradoxo' da teoria da dádiva e, que está subjacente à teoria das redes sociais. Este princípio permite superar a construção dicotômica entre obrigação/liberdade e interesse/desinteresse, na medida em que esses valores estão intrinsecamente desenvolvidos na ação coletiva, principalmente através das redes sociais. Para a teoria da dádiva esses valores não são contraditórios, são elementos de um paradoxo existente no círculo da troca de bens simbólicos e materiais. São expressões polares da realidade social complexa e elementos constituintes do movimento incessante e ambivalente de trocas.
A confiança gerada nas redes sociais pressupõe obrigações de reciprocidade. Este exercício de reciprocidade pressupõe um risco, próprio da teoria da dádiva, que não pode ser calculado, pois está aberto às incertezas. Há um risco inerente ao Dom/dádiva pelo fato de não haver certeza de que o receptor vai receber a ação ou vai retribuí-la. Tudo é possível.
Acredito que nenhuma ação humana é apenas cálculo instrumental ou apenas pura gratuidade e desinteresse, ela é mesclada de outras pulsões: dever, prazer, paixão e interesse. Não podemos absolutizar nenhum princípio que rege o social. A vida moral se desenvolve numa realidade social contingenciada e ser ético e solidário também pode ser rentável.
Em suma, podemos parafrasear Durkheim no sentido de que solidariedade é um conceito abstrato, essência, um princípio que não existe. O que existe são formas concretas de solidariedade; e, se todos são morais e solidários, essa solidariedade não se dá de forma única, igual. Ficamos com a percepção que estamos desenvolvendo importantes arranjos institucionais compensatórios, que estão se tornando permanentes, nos obrigando a revisar o modelo de coesão social que queremos para o Brasil. Resta-nos saber quais serão os resultados do sentido prático da solidariedade contida na providência produzida por tantas organizações de solidariedade social existentes no País. Será que continuaremos no 'gattopardismo': "mudar para que nada se mude"?
REFERÊNCIAIS BIBLIOGRÁFICAS:
BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Piados Básica, 1998.
COSTA, Maria Alice Nunes. As mudanças empresariais no Brasil Contemporâneo: o investimento social privado é uma nova forma de solidariedade? Tese de Doutorado. Instituto de Planejamento Urbano e Regional (UFRJ/IPPUR), 2006.
DURKHEIM, E. De la división del trabajo social. Buenos Aires: Schapire, 1967.
GRANOVETTER, M. The strengh of weak ties: a network theory revisited". Albany Conference on Contributor of Networks Analysis to Strutural Sociology, apr, 1981.
LECHNER, Norbert. Tres formas de coordinación social". In Revista de la CEPAL, 61, Abril, 1997.
MARX, K. e ENGELS, F. O manifesto comunista de Marx e Engels. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 1988.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Sociedade-providência ou autoritarismo social". In Revista Crítica de Ciências Sociais, "A sociedade-providência", n.42, maio, Coimbra: Centro de Estudos Sociais, 1995.
______. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo:Ed.Cortez, 1999a.
WELLMAN, Barry. Strutural Analysis: from method and metaphor to theory and substance. In ELLMAN, Barry e BERKOWITZ, S.D., Social Strutures: a network approach. Cambridge: Cambridge University Press, 1991